Por Emanuel Leite Jr.
Só há pouco mais de um mês consegui, finalmente, ver o documentário Diego Maradona, de Asif Kapadia (o aclamado diretor de Senna e Amy), lançado em 2019. Partindo de mais de 500 horas de material inédito, Kapadia nos mostra um filme de cerca de 130 minutos que se concentra nos espetaculares sete anos de Maradona no Napoli (1984-1991). Do apogeu à queda no sul da Itália, nós somos apresentados a uma metáfora do que foi a carreira e a vida deste gênio com a bola nos pés e um eterno inconformado, nos campos esportivo, político e social. Um filme que nos leva a um turbilhão de emoções, do riso às lágrimas, da euforia à indignação. Um filme que nos arrepia. Porque assim é a vida e foi assim que viveu “o mais humano dos deuses”, segundo Eduardo Galeano, Maradona, que nos deixou neste 25 de novembro de 2020.
O esporte, em particular o futebol, como “cultura esportiva hegemônica global”, é uma das maiores instituições culturais. Forma e consolida identidades. O futebol é sociologia, é política, é geopolítica, é psicologia. Para mim, Maradona era tudo isso, pois, como disse Galeano, foi “uma síntese ambulante das fraquezas humanas”. E foi precisamente à medida que eu fui tomando consciência desse aspecto tão humano de um dos maiores astros do futebol mundial que minha admiração por ele cresceu e se transformou em idolatria.
Um latino-americano orgulhoso de suas origens e que sempre lutou pela emancipação dos seus iguais, que eu conheci em tenra idade, nas manhãs de domingo da Bandeirantes. Aos sete anos de idade, já fanático por futebol, embora não entendesse bem a dimensão e transcendência do jogo, eu me encantei com aquele baixinho canhoto. Numa mistura de fascínio por aquele talento e insurgência familiar, criei afeição àquela figura tão abominada pelos meus parentes na sala da casa do meu avô materno. Aos meus olhos de pequeno fã de futebol, não havia rivalidade Brasil x Argentina, então, assim como Maradona se insurgiu contra os padrões e poderes estabelecidos, eu me levantava contra os familiares. Era ele tocar na bola e um tio, uma tia ou um primo vosciferava raivosamente ofensas que eu ainda era incapaz de compreender e que só anos depois fui capaz de compreender que eram relacionadas às suas fragilidades humanas. Talvez tenha nascido aí um pouco do meu inconformismo. Definitivamente, foi aí que nasceu a minha identificação simbólica com Maradona.
O quinto de oito filhos de um casal pobre, morador de uma favela na Grande Buenos Aires, nasceu no Policlínico Evita, em Lanús. Uma feliz coincidência. Primeiro, porque seus pais eram Peronistas, com fotos de Evita e Juan Perón em casa. Segundo, porque anos mais tarde, aquele pequeno garoto de nome Diego Armando Maradona também se tornaria um ícone popular. Um mito ainda maior do que a própria Evita Perón, mãe dos descamisados, dona dos corações do povo pobre e trabalhador argentino. Em um país onde as pessoas nutrem verdadeira adoração por seus ícones, Maradona seria alçado à condição divina, com direito a uma Igreja dedicada a ele e tudo.
Desde cedo, o baixinho Maradona tinha na bola a sua melhor companheira. E era com ela que ele chamava a atenção de todos Villa Fiorito. Graças ao seu talento, Maradona era o garoto mais popular da localidade. E foi por chamar tanto a atenção que ele ingressou em um clube de futebol aos nove anos. Um colega fora aprovado em um teste nas categorias de base do Argentinos Juniors e disse ao treinador Francisco Cornejo que conhecia alguém ainda melhor. Com dez pesos dados pelo técnico, o garoto levou Maradona ao treino no dia seguinte. Cornejo mal podia acreditar naquilo que via em campo.
Aos 10 anos, já era conhecido pelos torcedores do Argentinos Juniors. Nos intervalos dos jogos, o pequeno craque entretinha os torcedores com seus malabarismos com a bola. Aos 15, em 1976, estreou no time profissional. Entrou no time titular para sair apenas em 1981, quando se transferiu para o Boca Juniors, maior e mais popular clube do país. Antes disso, em 1978, o técnico da seleção argentina, Menotti, não atendeu ao clamor do povo que o pedia na Albiceleste para a disputa da Copa no país portenho, por achar que ele era muito novo. Uma frustração que o acompanharia para sempre. Ao vencer a Copa do Mundo de 1986, disputada no México, em meio à alegria pela conquista tão sonhada e pela sua consolidação no topo do futebol mundial, Maradona não deixou de lamentar que o triunfo tenha sido tão longe do seu povo.
Sua primeira Copa foi a de 1982, na Espanha, país para onde Maradona iria se mudar, pois sua transferência para o Barcelona já estava acertada. No Mundial, o jogador não brilhou, marcando apenas dois gols. No clube catalão, sua trajetória foi atribulada, sofreu com uma hepatite na primeira temporada e um tornozelo fraturado na segunda, que o deixou 106 dias fora.
Em 1984 chegaria ao Napoli. Uma transferência inusitada. Afinal, embora tradicional, o clube do pobre Sul da Itália era pequeno nacionalmente, com apenas duas copas nacionais em seu palmarés. Porém, o destino não poderia ter reservado uma reunião mais perfeita do que esta. Afinal, o cabecita negra (termo pejorativo argentino, de cunho tanto racista, como classista para se referir a pessoas de pele e cabelos mais escuros, que, por essas razões, era usado também para ofender os peronistas), como ele mesmo, contestador e insurgente, se descrevia, foi jogar no clube da cidade do povo, segundo os preconceituosos do rico Norte da Itália, “escuro e fedido”, porque “não se lava” e que, de acordo com cânticos das torcidas nortenhas, o Vesúvio bem que os podia lavar com fogo.
Porém, antes de levar o Napoli à apoteose do futebol italiano, El Pibe regeu sua Argentina ao seu bicampeonato Mundial. Em 1986, no México, o mundo viu a maior atuação individual em uma Copa do Mundo. Depois de eliminar o rival Uruguai nas oitavas de final, os argentinos tiveram pela frente a Inglaterra na fase seguinte. E aqui entra o componente geopolítico como estímulo extra a um jogador que sempre foi movido pela ira e o desejo de vingança. afirmou certa vez. Argentinos e ingleses nutriam um sentimento de rivalidade desde a Guerra das Malvinas, em 1982. Para os argentinos, humilhados na disputa bélica, mais do que um jogo de futebol, aquele encontro tinha o sentimento desforra. E como o próprio Maradona certa vez afirmou, “todo domingo é dia de revanche”.
Até aquele dia, Maradona já fazia uma Copa muito acima da média. Naquela quente tarde mexicana, porém, o meia entrou em campo para se tornar história e se transformar em mito. Depois do 0x0 no primeiro tempo, Maradona protagonizou dois lances antológicos na etapa final. Aos seis minutos, aproveitando uma bola mal rebatida pela defesa inglesa, subiu para disputar a bola com o goleiro Shilton. Bem mais baixo, o argentino recorreu à mão para colocar a bola no fundo do gol inglês. “Eu não a toquei, foi a mão de Deus”, disse o craque. Quatro minutos depois, o craque argentino dominou a bola ainda em seu campo e partiu em velocidade. Imparável, Maradona foi driblando todos os adversários que apareciam à sua frente. Foram cinco ingleses abatidos ante sua superioridade, incluído o goleiro, até o meia empurrar a bola para o gol. Maradona deixava, então a condição de mero mortal, sendo alçado ao panteão de D10S para os argentinos. O gol mais espetacular da história das Copas. Que rendeu a narração mais marcante de todos os tempos, de Victor Hugo Morales, que arrepia até hoje:
“Maradona tem a bola, marcado por dois. Pisa na bola Maradona, arranca pela direita o gênio do futebol mundial… Deixa os adversários pra trás e vai tocar para Burruchaga… Sempre Maradona! Gênio! Gênio! Gênio!… tá-tá-tá-tá… Goooool! Me perdoem, quero chorar! Deus santo! Viva o futebol! Golaço! Maradona em uma corrida memorável, na jogada de todos os tempos! Serpente cósmica, de qual planeta você veio? Para deixar tantos ingleses pelo caminho? Para que o país em um só punho apertado esteja gritando pela Argentina! Graças a Deus pelo Futebol. Graças a Deus por essas lágrimas. Graças a Deus por esse Argentina 2 Inglaterra 0.”
Gary Lineker ainda diminuiria para a Inglaterra, mas a Argentina estava classificada para a semifinal. No gramado, Maradona soltava o grito de todo o seu povo. Um grito de revolta. Um grito libertador. Um grito tão potente que rompia as amarras da exploração imperialista, colonial, exploradora. Na semifinal, El Pibe ainda brilharia diante da Bélgica, fazendo os dois gols da partida. E na final, os argentinos bateriam a Alemanha num jogo eletrizante: 3×2, com Maradona dando o passa para o gol que decidiu o título..
No Verão de 1986, depois da Copa, Maradona volta a Nápoles no topo do mundo. Faltava, contudo, levar o Napoli ao topo da Itália. E ele o fez. Na temporada 1986/87, o clube conquista o Campeonato Italiano pela primeira vez. Aqui é importante frisar que Careca e Alemão ainda não faziam parte do elenco napolitano. Assim como fizera na Copa do Mundo, Maradona carregou o limitado time às costas até o triunfo. O Napoli começava a quebrar a hegemonia e os interesses econômicos e políticos dos ricos clubes do norte do país. Ganharia ainda uma Copa da Itália e uma Copa da UEFA, antes de vencer seu segundo Italiano, em 1990.
Desprezado pelas elites do país, o povo napolitano sempre teve no clube da cidade uma forma de identidade muito mais forte do que com a seleção nacional. Ser duas vezes campeão italiano para o torcedor do Napoli era como ser bicampeão do Mundo. Maradona sabia disso e na semifinal da Copa na Itália, quando a Argentina enfrentou as donas da casa no estádio San Paolo, em Nápoles, lançou o desafio: “Durante trezentos e sessenta e quatro dias do ano, vocês são considerados pelo resto do país como estrangeiros e, hoje, têm de fazer o que eles querem, torcendo pela seleção italiana. Eu, por outro lado, sou napolitano durante os trezentos e sessenta e cinco dias do ano”. E, como prova da dimensão transcendental do ídolo, boa parte do estádio napolitano torceu pela seleção do seu herói, a Argentina. Para a ira dos italianos. Os argentinos sentiriam isto na final, perdida para a Alemanha, no Olímpico de Roma que, em peso, apoiou os alemães e vaiou até o hino nacional da Argentina. Ao fim da partida, frustrado, Maradona chorou.
Em 1991, contudo, veio a queda. Há muito que se falava da vida fora dos campos de Maradona. Das festas, dos abusos de álcool e drogas. Em março de 1991, seu vício em drogas ficou escancarado. O jogador foi pego no teste antidoping, por uso de cocaína. Suspenso por 15 meses, o astro entra em depressão e jamais voltaria a ser o mesmo jogador. “Eu sei a culpa que tenho”, assumiu em conversa com Emir Kusturica, no documentário Maradona por Kusturica, de 2008.
Depois da suspensão, Maradona ainda jogou no Sevilla e Newell’s Old Boys, onde durou pouco devido a lesões musculares. Depressivo, voltou a se afundar em drogas. Mas, com a Argentina correndo risco de ficar de fora da Copa do Mundo de 1994, houve um clamor para que o herói nacional voltasse. E o astro deu a volta por cima, emagrecendo e entrando em forma. Nos Estados Unidos, atua em duas partidas, marcando um golaço contra a Grécia, comemorado com mais um grito de revolta, a sua revanche. Contudo, foi pego no antidoping e novamente suspenso por 15 meses. Ainda retornou ao clube do coração, Boca Juniors, onde teve alguns lampejos de craque, mas bem abaixo do que um dia produziu, decidiu abandonar o futebol em 1997.
A vida do craque pós-aposentadoria foi marcada por seus problemas com os vícios em drogas e álcool e a iminência da morte em duas ocasiões – 2000 e 2004. Tratou-se da dependência química em Cuba, onde conviveu com um dos seus maiores ídolos, Fidel Castro, a quem chegou a chamar de “segundo pai”. Maradona tinha uma tatuagem do líder revolucionário cubano na perna e outra do companheiro de luta de Fidel, o argentino Che Guevara no braço. Defensor da emancipação latino-americana e contrário às ingerências imperialistas, o craque se solidarizou à Revolução Bolivariana, estabelecendo uma amizade com o presidente venezuelano, Hugo Chávez. Em 2005, esteve em Mar del Plata, na Argentina, em manifestação durante a IV Cúpula das Américas, com a presença de líderes sul-americanos como Lula, Evo Morales, Kirchner e Chávez. Na ocasião, ele vestia uma camisa com a foto de George W. Bush em que estava escrito “War Criminal” (criminoso de guerra). Foi neste evento que Chávez exclamou “Alca, al carajo”, sepultando o projeto neocolonizador estadunidense da Área de Livre Comércio das Américas.
Maradona ainda apoiou a candidatura ao prémio Nobel da Paz das Avós da Praça de Maio, o grupo de mulheres que procuram crianças desaparecidas pela ditadura argentina. E também se declarou “soldado de Lula e Dilma”.
Para além de tudo isso, D10S ainda era gente como a gente. Um verdadeiro apaixonado por futebol. Torcedor de tirar a camisa no estádio para apoiar seu Boca Juniors em La Bombonera, onde era presença assídua. Fora o seu amor incondicional pela Argentina, demonstrado através das seleções nacionais, não apenas de futebol. Maradona fazia questão de acompanhar a Albiceleste em competições internacionais, como Copas do Mundo de futebol e basquete. Sempre vestido como um torcedor, algo que, apesar de todo o estrelato e de sua condição de um dos maiores de todos os tempos, ele nunca deixou de ser.
Na mitologia, um ser humano só seria alçado à divindade após a morte: tornando-se um semideus. Maradona era tão grandioso que se tornou D10S ainda em vida. Com talento sobre-humano, encantou o mundo nos gramados. Com sua consciência de classe, lutou pelas causas justas. Como ele mesmo disse, só temos que agradecer por ele “ter jogado futebol” afinal, foi o que lhe “deu mais alegria, mais liberdade”, foi “como tocar o céu com as mãos.” Obrigado, então, à bola. Obrigado, Don Diego Armando Maradona. Descanse em paz.
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