“Sempre disse que o Ceará tem uma dívida com a torcida feminina, e a gente quer que esse débito seja pago com a nossa participação“, disse a torcedora e coordenadora Janaína Queiroz ao NE45
Ainda criança, quando começou a frequentar estádios na companhia do seu pai, Janaína Queiroz dividia as atenções entre o campo, com o Ceará em ação, e as arquibancadas, contando, nos dedos, o número de mulheres que via. Por vezes, cabia em uma só mão, ela lembra. Hoje, aos 38 anos, enquanto coordenadora de projetos femininos no Alvinegro, a representante comercial conquistou a oportunidade de contribuir na transformação do seu time de coração.
A pasta, recém-criada pela nova diretoria, chegou como uma espécie de reconhecimento. Se o trabalho dentro do Mais Querido é recente, a importância da figura de Janaína junto ao clube é antiga. Presidenta da Torcedoras Raiz, primeira organizada formada apenas por mulheres no Nordeste, a coordenadora se tornou, a princípio, conselheira. Em março deste ano, veio o convite de assumir o novo posto, sendo nome unânime internamente.
Janaína será a segunda mulher a assumir um cargo de maior relevância na composição de diretoria, executiva e coordenações. Consciente da missão, a nova coordenadora vê o núcleo responsável, principalmente, por encurtar a distância com mulheres e minorias.
Em entrevista exclusiva ao NE45, Janaína Queiroz, mãe de Caio e Levi, como gosta de ser apresentada, falou sobre a relação íntima com o Ceará, lembrou do começo nas arquibancadas e avaliou o tamanho do novo desafio que tem pela frente.
Entrevista com Janaína Queiroz, coordenadora de projetos femininos do Ceará

NE45: Como e quando começou a sua relação com o Ceará?
Janaína: “Vou ao estádio desde que estava na barriga da minha mãe. É uma relação tão antiga que nem sei falar como começou. Meu pai brinca que sou alvinegra desde que fui gerada. Desde que me recordo, ainda na minha infância, o Ceará sempre esteve muito presente. Me lembro que quando o time jogava em outras cidades daqui, eu, meu pai, meu irmão e minha mãe íamos cedo para o lugar. Almoçávamos, visitávamos algum ponto turístico. Era um dia de lazer acompanhar o Ceará. Essas memórias ainda estão bem vivas. Até aqui, o amor só cresceu.”
NE45: Você preside a primeira torcida feminina de bancada do Nordeste. Quando te despertou essa vontade de estar com outras mulheres na arquibancada? Sempre existiu?
Janaína: Sempre foi uma vontade. Quando ia ao estádio como meu pai, que quase sempre estava acompanhado de amigos, eles levavam filhos homens. E o meu irmão era menor, então, geralmente não ia. O meu pai gostava de assistir, de fato, o jogo. E eu prestava atenção. Era mais quieta. Lembro de chegar em casa e a minha avó perguntar: ‘Quantas mulheres tinham hoje?’, e eu dizia: ‘Ah, vó, três, quatro’. Às vezes acontecia de ter mais mulheres. Uma vez, com uns 8 anos, falei para ela que tinha encontrado 11. E a gente comemorou, porque consegui contar em todos os dedos das duas mãos e ainda faltou. Acho que tudo começou aí. Hoje, a diferença é gritante. Muitas mulheres já vão sozinhas, com suas companheiras… é gratificante ver os avanços. São quase 10 mil sócias, hoje. E a tendência é que cresça cada vez mais.”
NE45: Como chegou o convite para ocupar uma coordenação no Ceará? Houve alguma condição da sua parte?
Janaína: “O convite surgiu logo depois da eleição. O João Paulo me fez uma ligação e me convidou para a coordenação de projetos femininos e minorias. E de imediato fiquei muito feliz com o convite. Ele não me conhecia e até comentou que foram outras pessoas que me indicaram. Fiquei muito honrada. Acho que tudo tem seu tempo. Vejo que essa gestão quer muito aproximar o torcedor do clube e entende que esse movimento tem que partir também para as torcedoras. Então, fico muito feliz de estar à frente disso. Não colocaria minha mão onde não fosse fazer a diferença.”
NE45: Como funciona a sua participação junto ao Ceará? O funcionamento da rotina, o processo de sugerir ideias…
Janaína: “Essa coordenação não existia. Então, é uma pasta que estou criando junto à gestão, que vai envolver as diretorias de Eventos e de Marketing. Estamos trabalhando intensivamente nesses três jogos da punição. Mas não é algo que preciso estar no clube o tempo todo. Tem muitas coisas que consigo fazer de longe. Nas últimas semanas, tenho ido bastante, porque a minha presença tem sido importante. E quando tenho algo a acrescentar, recorro às diretorias e a ele (João Paulo), que é muito acessível. Inclusive, recentemente estive na base, em uma palestra sobre violência contra a mulher, e já pude colher algumas informações, que foram passadas, para que a gente também possa desenvolver trabalhos nesse sentido.”
NE45: O cargo é uma nova realidade para você, acredito. Como você tem se aprimorado? Tem contato com outras mulheres que também ocupam outros clubes?
Janaína: “É um desafio. Estou fazendo alguns cursos de gestão, de marketing. Tenho conversado com alguns clubes. Mas a maioria, de fato, não tem essa coordenação. Acho que só o Coritiba. É algo bem novo. Ainda estou vendo como posso fazer esse link. Mas, de início, até no projeto que apresentei para o João Paulo, tem a inserção de reuniões bimestrais, com vários segmentos da torcida do Ceará. Mas, estou conversando com as pessoas. Sou uma boa ouvinte e sempre procuro me aperfeiçoar de alguma forma. E sigo assim. Estou buscando conhecimento, trazendo informações e conversando com o pessoal do clube para tentar trazer novidades que agreguem.”
NE45: Os clubes de futebol ainda são espaços majoritariamente masculinos, principalmente no que diz respeito às decisões tomadas. Há projetos em curso para aumentar o efetivo de mulheres trabalhando no Ceará?
Janaína: “É um clube bem masculino, sim. Assim como muitos outros. A gente sabe que conquistou algum espaço, mas ainda é pouco. Estou entre 14 conselheiras. Um dos projetos que tenho é, realmente, abrir o Conselho para as mulheres. A gente reaver a taxa de aquisição do título, ver se ela se torna mais acessível para que outras mulheres possam comprar o título. É importante que o Conselho tenha essa participação feminina. Assim como outros tantos espaços do clube. Hoje, muitas mulheres fazem parte do programa de sócio, da logística de jogos..e quanto mais tiver, melhor. Eu sempre disse que o Ceará tem uma dívida com a torcida feminina, por algumas questões de trazer jogadores com histórico de agressões, por exemplo, e a gente quer que esse débito seja pago com a nossa participação.“
NE45: A Janaína somente dos tempos de arquibancada sonhava com tudo que você conquistou até hoje em relação ao Ceará?
Janaína: “Eu não sonhava. Acho que tudo foi acontecendo muito rápido. Tinha o amor pelo clube, claro, mas eu não me projetava tão envolvida lá dentro. Apesar de já ter alguns posicionamentos no Twitter, onde as pessoas me acompanhavam. Então, acho que a torcida me deu uma visibilidade muito grande. Porque, queira ou não, estar à frente de uma T.O traz muita responsabilidade. Mas foi uma trajetória natural. Tenho muito orgulho, mas sinto que ainda tem muito pela frente. Almejo coisas dentro do Ceará, só que tenho a consciência de que só vou até onde eu posso. Aceitei essa missão por saber que posso fazer um bom trabalho.”
NE45: O seu trabalho, que está começando, deve colher frutos importantes lá na frente. Como gostaria que o Ceará fosse reconhecido daqui a alguns anos?
Janaína: “Como um clube aberto. Realmente, fazendo jus ao slogan ‘O Time do Povo’. Um clube onde mulheres, PCDs e LGBTs se sintam representados. O que almejo é trazer os anseios dessas pessoas para dentro e dizer: nós existimos, estamos aqui, somos torcedores, consumimos os produtos, amamos o clube e queremos que o Ceará enxergue a gente. Que não seja como um tempo atrás… fechado, retrógrado, que não se expõe. Quero que as pessoas olhem e falem: ‘o Ceará mudou muito, se tornou um clube inclusivo‘.”
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