“Quem sabia a real situação do Ceará, não ficou surpreso com o resultado”, declarou uma ex-atleta do clube ao NE45.
Na estreia de uma temporada inédita para o futebol de mulheres das Meninas do Vozão, o clube mandou a campo atletas ainda em formação, que foram facilmente goleadas por 10 a 0 pelo Flamengo, em partida válida pelas quartas de final da Supercopa do Brasil. Por descaso, meninas entre 14 e 22 anos foram expostas e sequer conseguiram oferecer resistência à equipe carioca. O episódio do último domingo (5), no entanto, é tão somente a “ponta do iceberg” no Ceará.

Para entender o real cenário, hoje, vivido pelas Meninas do Vozão, é preciso dar alguns passos para trás. Voltar aos últimos meses de 2022, mais especificamente. Isso porque a disparidade vista em campo no Luso-Brasileiro, há uma semana, é o resultado de um conjunto de situações e, principalmente, de escolhas.
Em busca de respostas, o NE45 conversou com ex-atletas e funcionários – todos preferiram o anonimato, por receio de retaliações – que estiveram em Porangabuçu na temporada vitoriosa de 2022. Alguns já em novos desafios, outros desempregados, mas todos fruto do desmonte completo – dentro e fora das quatro linhas – promovido pelo Alvinegro. Abaixo, as promessas, os atrasos e o descaso sob a ótica dos bastidores.
O desmonte das Meninas do Vozão visto de dentro
A chave virou, de fato, quando o rebaixamento da equipe masculina do Ceará foi consumado. Naquele dia, a sensação de todos os envolvidos com a modalidade se resumiu a uma certeza: as coisas vão mudar. Foi o que afirmou uma ex-atleta do clube em contato com a reportagem.
“A gente conseguiu o que o clube mais queria, que era o acesso à elite. E não só isso, a gente conseguiu o título. Então, entramos para a história do clube e do Nordeste. Nem o masculino conseguiu um título brasileiro… A gente estava acompanhando tudo. Infelizmente, na maioria dos clubes, se o masculino sai prejudicado, afeta a gente”, relatou.
O que o elenco não esperava – nem de longe – era que os desdobramentos determinariam a continuidade do projeto. Até porque o futebol de mulheres alvinegro havia vivido o maior – e melhor – ano esportivo da sua história em 2022.

Acesso à Série A1 do Brasileiro. Título da A2. Primeira equipe feminina do Nordeste a conquistar um nacional. Melhor time da Região no ranking da CBF. A valorização esperada pelas Meninas do Vozão não veio. Pelo contrário.
“A gente passou dezembro sem receber. Natal, ano novo, férias..sem nada no bolso. Algumas meninas, inclusive eu, tiveram que vender bens materiais para pagar conta, para conseguir se manter ali. E, claro, as contas ficaram atrasadas, outras não tinha como. Eles foram acertar com a gente em janeiro, na segunda semana”, relatou outra ex-jogadora.
Comunicação falha no Ceará
Para além das incertezas, o caminho escolhido pelo clube foi decepcionante para as atletas. De acordo com uma delas, o impasse quanto à decisão de sair foi um dos piores momentos. O grupo não sabia qual passo dar em meio à ausência de comunicação por parte do clube.
“Todas nós ficamos esperando uma posição. Eles falavam para a gente que estavam correndo atrás de patrocínio. Então, muitas meninas esperaram até um certo momento um retorno. Mas chegou uma hora que começamos a pensar em outras possibilidades… Era uma vontade de ficar, esperei até o último momento”, lamentou.
“Então, acho que eles demoraram para falar com a gente. Eles poderiam ter avisado antes. Nem sei se realmente estavam correndo atrás de patrocínio e tudo mais. Mas teve essa demora. Creio que eles foram até as últimas para conseguir… Acho que até quem cuidava do departamento estava esperando uma posição”, completou.
Meninas do Vozão: “Faltou consideração”
Ainda de acordo com um dos relatos colhidos pelo NE45, não faltou compreensão por parte do elenco. As jogadoras, naturalmente, entendiam que a realidade financeira do clube seria outra com o peso do descenso à Série B. Mas, ainda assim, o sentimento coletivo é de que faltou empenho por parte do Ceará.
“Falta de dinheiro não é desculpa. Se eles realmente quisessem, teriam arrumado um meio de manter o feminino“, desabafou.
“A gente achou isso tudo uma falta de consideração por tudo que a gente conquistou. A gente entendia, sim, a situação. Mas, pô… um clube grande como o Ceará não consegue manter o futebol feminino? Quantos clubes masculinos foram rebaixados e mesmo assim continuou com a modalidade? O Cruzeiro foi um, Grêmio também”, citou.
Planejamento interrompido
O lamento é maior. Se estende, também, a um ex-funcionário. Segundo ele, já havia um planejamento desenhado antes mesmo da queda do masculino ser consumada. O trabalho interrompido foi um balde d’água fria no trabalho atual e no crescimento projetado internamente por pessoas do departamento.
“As coisas não eram tão simples. A gente começou a escutar algumas situações que logo depois foram comprovadas, com os cortes no orçamento do clube e a diminuição de vários funcionários. Foi complicado. Até porque a gente já vinha fazendo um planejamento para esse ano. E as coisas começaram a mudar de uma hora para a outra”, afirmou.
Ainda de acordo com o ex-funcionário, o clube sequer se mostrou apto para cumprir o plano B: tentar, ao menos, manter as principais jogadoras do elenco. Neste cenário, a chegada de reforços nem mesmo estava mais em pauta. O Ceará, então, deu a cartada final. O salário, que já havia atrasado em dezembro, teria que ser reduzido.
“O que peço é que olhem diferente pelo futebol feminino. Não somente como um setor obrigatório, que existe porque a CBF exige”, reivindicou.
“Além de não ter a valorização para ninguém, teria que ter uma redução. Chegou um ponto que não deu mais. Fiz de tudo para seguir. Poderia até ter acertado com outros clubes, mas decidi acreditar até o fim. Queria muito dar continuidade, mas toda essa condição pesou”, lamentou o ex-funcionário.
Investimento

Em 2022, nenhum outro clube investiu mais no futebol de mulheres no Nordeste do que o Ceará. Com base em levantamento feito pelo Blog de Cassio Zirpoli, por exemplo, o Vozão destinou R$ 1.298.765 para o departamento – incluindo atletas, comissão técnica, coordenação e supervisão.
Na média, R$ 100 mil por mês. O que correspondeu, no entanto, a menos de 2% do custo anual com pessoal do clube alvinegro, na casa de R$ 82,3 milhões. Com o rebaixamento, tudo mudou. E de forma brusca.
Hoje, existe um abismo considerável de patamar com relação às Séries A e B. Logo de cara, diga-se, o Alvinegro perdeu, pelo menos, R$ 15,2 milhões – verba que o 1º ao 16º lugar recebem pelas posições finais no certame nacional da elite masculina.
Para 2023, o Ceará ainda não deu detalhes do orçamento. Logo, a atenção financeira, de fato, dada às Meninas do Vozão nesta temporada é uma incógnita. A previsão, no entanto, é de que a folha do clube se aproxime dos R$ 2 milhões por mês.
O que diz o Ceará?

Em contato com a reportagem, o Ceará foi sucinto na resposta. Em nota, o clube reiterou as dificuldades financeiras enfrentadas com o rebaixamento de divisão e citou outras mudanças – para além do feminino – necessárias no dia a dia. O clube projetou um maior investimento no elenco visando a disputa da A1 do Brasileiro, principal desafio do ano.
Confira nota na íntegra:
Devido à queda no masculino, o orçamento do clube foi bruscamente reduzido. Infelizmente, não só foi necessária uma reestruturação do clube, como ela ainda estava em curso até dias atrás. Setores foram reduzidos, outros tiveram as atividades paralisadas e se estudou o que se faria com o Futebol Feminino, uma vez que com o clube na Série B do masculino, já não havia obrigatoriedade da manutenção da modalidade. A diretoria responsável decidiu pela continuidade do projeto para a temporada, mas ainda viabiliza recursos para a montagem de um grupo de maior competitividade.
Agora, mais próximo do início da Série A1, maior objetivo do clube no ano, o pensamento é buscar reforços pontuais para que o grupo torne-se mais competitivo e consiga buscar a manutenção na A1.
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